Um dia, eu vou desaparecer
Eu vou esquecer meu nome e de como gostava do pôr do sol. Vou parar de sentir meus ossos e meu coração batendo por tantas pessoas. Eles vão morrer e as memórias não ficarão com ninguém. Vou virar fumaça, água, serpente, pássaro de fogo. Não vou renascer. E todas as minhas coisas — as caixas ainda fechadas, as histórias acumuladas, as minhas cenas preferidas, as árvores que amei e todos os pedaços de vidas alheias que colecionei... tudo, você, as cores nas quais dancei nos dias pretos e brancos — vão encolher e virar fantasmas.
Sem a mim para existir, eu, você e tudo que virou nada não vai mais continuar. Como todas as coisas perdidas e sem dono, elas serão enterradas sem cuidado e amor. Serão pisoteadas, muitos anos depois, por crianças que não sabem que eu já existi. Que tudo que senti era esperança por dias coloridos.
Ninguém mais saberá soletrar o meu nome e citar a minha flor favorita. Ninguém vai adivinhar sobre os momentos de desespero, de gratidão e de culpa. Porque eu os levei embora em palavras jogadas ao vento no meio daquele oceano que arrebentou o meu peito. Ninguém vai poder dizer que não foi por amor ao desconhecido, pela alegria de dias por entre o verde e pela tranquilidade de um silêncio subestimado.
Ninguém mais vai poder apontar a direção do trem rumo às estrelas, porque, talvez, o céu já esteja de outro jeito e todas as estrelas que amei já se foram também.
Não há mais ninguém para ficar, agora.
As crianças também desapareceram e o mundo já não é mais o mesmo. As placas tectônicas se reencontraram como velhas amigas e o mar é mais natural e potente agora.
Já existiu um mundo de recortes aqui, eles dizem. Já fomos palavras e frases inteiras. Já fomos abraços e beijos. Já fomos fogueira e espada. Já fomos nomes próprios, já sentimos tanto, já nos apaixonamos, já desejamos o fim dos outros muitas vezes.
Hoje somos água sedimentada, matéria escura, solidão, términos, indigentes. Hoje as memórias estão presas em cubículos, empilhadas em sorrisos falsos e requentadas com gosto amargo. Você não se lembra, mas já esteve aqui. Esmagando as folhas outonais. Observando nuvens. Desenhando cometas. Você já escreveu histórias e amou tantas outras. Amou o amor e as gaivotas e as prosas tristes. Já pendurou luzinhas de Natal, disse eu te amo para pessoas diferentes e adotou duas gatas.
Você já viveu e morreu.
Morreu e continuou morrendo.
E todas as melhores coisas sobre a vida você descobriu e partilhou.
Chegou ao oceano no fim do caminho e agradeceu por tanto — por tudo. Você faria tudo de novo. Escolheria as mesmas pessoas, as mesmas flores, as mesmas cenas.
Você cantou, riu, amou.
E agora não tem mais um nome.
Agora é apenas uma imensidão à espera. E você se achou. Onde quer que esteja agora.
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Imagem: Nina Spim |
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