Lou: feminismo e psicanálise

janeiro 26, 2018
Temáticas psicológicas sempre me cativam, mas fui assistir Lou sem nem mesmo ler a sinopse, tudo o que sabia era que a história girava em torno de uma mulher que não queria estar nos padrões sociais impostos. Não tinha nem mesmo me dado conta que era sobre uma mulher real. 


Título original: Lou Andreas-Salomé
Direção: Cordula Kablitz-Post
Duração: 1h53
Gênero: Drama histórico / biografia
Ano: 2018
★★★★★

Lou é o segundo filme alemão que assisto na vida e, pra falar a verdade, eu não vi muitas diferenças entre este cinema e o francês; pelo menos, não assistindo a esse filme. Ele se assemelha ao cinema francês com suas falas sarcásticas leves e bela fotografia, assim como um delineamento narrativo mais vagaroso. Esses elementos foram o suficiente que eu me apaixonasse cada vez mais pelo que estava na tela. 

Mas a verdadeira paixão acontece além desses elementos. Como a história é focada em Lou (Lou Andreas-Salomé, uma das primeiras psicanalistas russo-alemãs), é impossível não acompanhar tudo o que ela vai se tornando conforme o enredo anda e volta. O filme já começa no meio de uma ação, que não é cronológica. Acompanhamos pouco da infância de Lou, mas muito de como ela tenta formar suas ideias, ideais e caráter ao longo da vida. Apesar de não conhecermos a fase criança da protagonista, conhecemos muito de sua fase idosa, uma vez que o filme acontece por causa da escrita de sua biografia. 

Então, temos Lou idosa rememorando cenas de sua infância, adolescência e de sua fase adulta (sendo esta, a mais extensa na tela) a partir de fotografias. Aqui, há algo muito lírico e diferente, pois a construção da imagem em movimento acontece de forma também estática. Quando há esses flashbacks, o espectador se vê olhando para um cenário estático, enquanto somente Lou aparece em movimento, como se a personagem estivesse se lembrando para além da cena congelada. 

Sendo a fase adulta a mais prolongada, acompanhamos sua relação com outros personagens, todos homens. Cada um deles é alguém também real. Primeiro, aparece o poeta Rainer Maria Rilke, que busca constantemente o amor de Lou. Então, outro pretendente também aparece, mas ela recusa o compromisso, estabelecendo somente uma relação intelectual com ele. A partir deste segundo personagem, Nietzsche vem para agregar uma espécie de triângulo amoroso, mas inútil. 

Apesar de parecer que o filme é sobre como os homens admiram e amam Lou, acontece algo que pouco vemos em narrativas reais: Lou, na verdade, não se interessa por nenhum deles, uma vez que busca somente o aprendizado, sua educação formal e a troca de conhecimento. Para o século XIX, o fato de ela recusar o matrimônio e a maternidade era um escândalo (embora isso pouco foi realmente trazido à tona; temos esse conflito na relação com a mãe). Ainda que as mulheres fossem aceitas em universidades, eram mal vistas se priorizassem a vida acadêmica. No entanto, Lou era tão bem aceita no círculo acadêmico, por várias personas da elite, que entendemos que a satisfação pessoal dela não estava na admiração amorosa dos homens, mas muito longe disso. 

A intectualidade da personagem acontece desde muito pequena, assim como a aversão aos padrões sociais. Muitas vezes, ela se comporta como "homem" não porque queira se parecer com um, mas porque sabe, especialmente, dos benefícios que isso traz. Não à toa, por exemplo, seu primeiro livro tenha sido sob um pseudônimo masculino. E também não à toa suas ideias eram bem aceitas, uma vez que ela não era delicada e complacente na hora de defendê-las.

O diálogo com o feminismo, num tempo tão longe (metade de 1800), acontece a todo momento, não somente por causa dos ideais libertários que Lou escrevia e disseminava, mas por causa da sua própria consagração à frente de figuras importantes, quase todas masculinas. Onde não deveria estar é onde se empenha para estar, exercendo um papel muito ativo e pioneiro. 

A riqueza dos relacionamentos é um ponto muito essencial para o filme. Nenhuma relação que a personagem estabelece é fraca ou pouco trabalhada (à exceção de Freud, que aparece muito pouco). É na dinâmica relacional que acontece a atmosfera psicológica do enredo, assim como acontece o entendimento da sociedade alemã. Essas relações vêm cheias de diálogos, todos muito importantes, ricos e precisos. Você não verá cenas "desnecessárias", uma vez que todas são essenciais para a construção não somente de Lou, mas da mulher-modelo da época e de suas "obrigações". 

A história de Lou não narra apenas a trajetória de uma mulher além do seu próprio tempo, mas a trajetória de uma busca incansável de liberdade e de vontade de ser dona de seu próprio destino. Considerando que, se hoje a mulher ainda é sujeita a uma sociedade patriarcal, naquela época, a realidade era ainda mais difícil. Aliás, a historicidade pode, com certeza, ajudar a fazer correlações como, por exemplo, a ânsia por liberdade alemã após a Revolução Francesa. Ainda que os nomes ligados à filosofia francesa sejam, quase todos, de homens, as mulheres também estavam na Revolução - porém, de outras maneiras, como provocando motins e participando de assembleias*

É muito fácil perceber que o que Lou traz não é a ânsia de uma mulher solitária, mas a ânsia de várias mulheres. Por isso, o pensamento feminista é permeado ao longo da formação da personagem. Talvez, naquela época, as pessoas não soubessem o que ela estava tentando disseminar - inclusive, os homens que acompanham sua trajetória, muitas vezes, contestam suas convicções, mesmo sendo intelectuais. 

Lou não é um filme para qualquer um - nem mesmo para toda e qualquer mulher. Eu me identifiquei muito com a personagem, por causa de seus ideais intelectuais e pessoais, mas sei que cada pessoa é diferente. Sei que o feminismo, aliás, não é se recusar a casar e ter filhos. Não adianta você não saber sobre o feminismo ou saber o senso-comum dele e ir assistir ao filme - pode ser que você saia do cinema com a ideia errada sobre o movimento, ou que se decepcione com a trajetória de Lou. 

Muito mais do que sobre psicologia, Lou é um filme sobre mulheres, liberdade e formação pessoal. É uma história enriquecedora, tanto por causa do âmbito histórico, como por causa do âmbito social. O filme entrelaça questões político-sociais que se fazem necessárias hoje e que nos provocam o pensamento além do óbvio. 

"Torne-se aquilo que você é"





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* Dica de livro sobre o entrelaçamento da história com o movimento feminista: Breve história do feminismo, de Carla Cristina Garcia. 


Love, Nina :)

8 comentários:

  1. Oi Nina! Confesso que esse não é o tipo de filme que me interesse. Narrativas vagarosas e longos diálogos filosóficos não são meu forte. Mas admiro a força de mulheres como Lou, que lutaram por um lugar ao sol em meio a uma sociedade machista e permitiram que nós hoje pudéssemos estar onde estamos. Ainda há muito a conquistar, mas elas foram fundamentais em suas épocas.
    Beijos

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  2. Oi Nina, não conhecia o filme, e muito menos tinha conhecimento sobre Lou Andreas-Salomé. Em relação a experiência de um filme russo, confesso que nunca sei, ou nunca me importo muito com isso na hora que vou ver um filme.
    Pelo que você falou do filme, e da própria Lou, ela e um belo exemplo de nós mulheres
    Bjs, Rose

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  3. Nina, estou encantada com essa dica! Não conhecia o filme, buscarei mais sobre ele e o assistirei o quanto antes. O filme parece intenso, me identifique bastante.

    bjs
    www.livrosdabeta.blogspot.com.br

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  4. oi, Nina... eu adoro Lou Salomé e fiquei bem interessada quando vi que ia sair esse filme sobre ela. Eu curto o cinema alemão... na primeira oportunidade que tiver, irei assistir...
    bjs ^^

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  5. Olá Nina, não conhecia esse filme, mas pelos seus comentários a trajetora de Lou parece ser inspiradora *-* Espero poder assisti-lo em breve.

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  6. Conheço a história de Lou pelos livros, ainda não tive a alegria de ver o filme, apesar de ter estudado muito sobre psicanalise, principalmente Lacan, meu amor fica em Jung, por isso raramente vejo os filmes que envolvem de alguma maneira a temática, fico mais nos livros, mesmo assim, dica anotada.

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  7. Ainda não assisti, parece ser bem interessante :D

    https://submersa-em-palavras.blogspot.com.br/

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  8. Um texto maravilhoso, pena que sempre querem encaixar a ferrugem do feminismo numa figura que nunca precisou dele. Lou era livre e teve uma criação libertária. E isso por si só, já abriu o leque pra ela poder estudar e ter sua personalidade desinibida. Acho tosco tentarem encaixar um rótulo numa figura que sempre esteve a frente de seu tempo com objetivos próprios sem precisar ou dar ouvidos as conversas alheias da sociedade da época. Nada a impediu de ser torna quem ela quis ser. É sobre isso que estou a dizer aqui, Lou não tava nem aí pro um movimento denominado "feminismo" ela só estava vivendo e aprendendo do jeito que sempre quiz e como qualquer uma mulher pode fazer. Sei que as feministas de plantão tem seus argumentos e talz, mas vamos parar de procurar figuras do passado e colaca-las como feministas, isso é feio.

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Editado por Alice Gonçalves . Tecnologia do Blogger.