As boas mulheres da China: a violência que destruiu gerações
Contextualizar a mulher é difícil. Por mais que falemos em “mulher moderna” ou “mulher contemporânea”, essa mulher ainda não nos diz tudo. Quando li O segundo sexo, entendi melhor o porquê a Simone Beauvoir diz que não existe “mulher”, mas “mulheres”. Não existe uma fórmula para ser fêmea, e isso inclui não somente conceitos físicos e emocionais, mas também a historicidade: onde essa mulher está inserida?
Qual seu passado? Quando assisti Nanette, também aprendi mais sobre o que é mulher. A Hannah diz que o passado importa. Destruindo a mulher, destrói-se o passado que ela representa. A Marcia Tiburi, inclusive, me apresentou um viés de mulheridade que eu nunca tinha pensado antes. Muito mais do que se tornar mulher, todas nós somos marcadas como mulheres. O rosa, os brincos nas orelhas, os estupros. Tudo isso nos marca. Ainda assim, não consegue definir quem somos e por que somos mulheres. Mulher foi algo que nos disseram que éramos.
Escrevo essa intro, porque ela define bem a leitura de As boas mulheres da China. Não são apenas mulheres da China, são mulheres na China. Mulheres que não tiveram outra chance de ser outra coisa que não isso.
É a jornalista Xinram que conta as histórias de vida de mulheres que conheceu. Ela é apresentadora de uma rádio, na qual tem a oportunidade de falar de mulher para mulher. Pela situação da narradora ser boa, melhor do que a maioria, ela percebe que pode ser uma porta-voz das desumanidades, humilhações e violações que ocorrem com outras iguais. O “mote” do livro é justamente compreender o gênero feminino além daquilo que lhe chega por meio do estúdio.
As boas mulheres da China não consegue compreender ou resumir o objeto de estudo do livro, porque as mulheres escritas ali são recortes. Como o livro se passa entre as décadas de 80 e 90, o leitor pode acompanhar, inclusive, como as transformações sociais, políticas e econômicas do país construíram e destruíram as mulheres relatadas.
Para muitos chineses, quando um homens espanca a esposa ou os filhos, está "pondo ordem na casa". As camponesas mais velhas, em particular, aceitam a prática. Como viveram de acordo com o ditado de que "uma esposa ressentida tem que suportar até virar sogra", acreditam que todas as mulheres devem sofrer o mesmo destino. p. 220-221
Elas não são o estereótipo do que conhecemos das chinesas hoje em dia. Elas são as chinesas reais, que sofreram e ainda sofrem abusos de diferentes pessoas, por diferentes motivos - especialmente por motivos políticos e militares. É muito triste perceber como a Revolução Cultural quebrou essas mulheres que, mesmo décadas depois, ainda têm medo dos homens, acreditam que o amor agride (por isso sentem medo ou vergonha) e que não conseguem sair do papel social da mulher que lhes foi imposto.
De início, eu não achei a leitura triste, mas depois começou a se tornar pesada e sufocante, porque é muito ruim imaginar as cenas de violência, estupro e humilhações que são descritas. E essas cenas acontecem não somente com mulheres de trinta anos, mas com meninas de oito, onze, quatorze anos.
Na colina dos Gritos, "usar" é o termo empregado pelos homens quando querem dormir com uma mulher. Quando voltam, ao pôr do sol, e querem "usar" as esposas, costumam gritar impacientes: "Por que é que você está molengando aí? Vem para o kang ou não?". Depois de serem "usadas", elas vão cuidas das crianças, enquanto os homens roncam. Só quando anoitece é que podem descansar, pois não há luz para trabalharem. p. 242
É muito doloroso entender que gerações inteiras de mulheres nunca aprenderem a exprimir quem são ou a se amar, simplesmente porque os homens estavam acima delas, antes de tudo, como maridos, especialmente. A hierarquia engessada do casamento parece uma cova funda para essas mulheres, e é muito triste e revoltante perceber que, apesar de muitas não aceitarem as situações, não tinham poder de bater de frente. Enquanto os homens traíam, violentavam, puniam, as mulheres dormiam em camas imundas, comiam as sobras dos maridos, eram amarradas em correntes de ferro.
Ler As boas mulheres da China foi uma surpresa muito boa, assim como necessária. Foi incrível ler outras realidades, mas que, mesmo muito longe, dialogam com o conceito de ser mulher. Infelizmente, a gente sabe que nascer, ou se tornar, ou ser marcada como mulher ainda não significa liberdade plena e autonomia. Mas significa coragem e resistência. As boas mulheres da China, com certeza, foram e são corajosas e resistentes. Apesar de terem sido “reeducadas” pela reforma comunista, de quase terem se esquecido de quem eram por traumas e de terem passado por uma série de tratamentos machistas inescrupulosos, estão vivas e têm uma história.
O estupro lhe deixara claríssimo que ela era mulher. p. 116
Lembro de pensar que, se houvesse outra vida, eu não queria nascer mulher. p. 210
Love, Nina :)
Antes de mais nada, preciso elogiar essa resenha.
ResponderExcluirAMO o seu jeito de analisar e criticar alguma obra. Pois desperta o interesse pela leitura e saio daqui com várias dicas anotadas.
Eu já tinha lido uma resenha sobre esse livro, mas apesar de ter me interessado pela premissa, não tinha despertado o meu interesse.
É uma daquelas leituras que nos faz sofrer, né? Faz com a gente se coloque no lugar das vitimas e se questionar do pq as coisas ser como são.. Um soco na cara, no estomago.
Sem dúvidas, quero ler
Sai da Minha Lente
Ola!!!
ResponderExcluirAntes de falar qualquer coisa a respeito deste livro, eu quero lhe desejar os meus mais sinceros parabens por causa dessa sua resenha! Está linda, completa, realista e explicativa! Perfeita!
Bom, não conhecia esse livro em questão e conforme seguia lendo a sua resenha fui me deparando com uma historia que eu acredito que me deixaria marcas se eu lesse e por conta disso prefiro evitar. É muito sofrimento... fiquei impressionada com as idades que disse... ceus!
Mas, novamente, parabens pelo seu texto... vc arasou!
beijos
Esse sentimento que você passa na resenha, essa questão de identidade própria e identidade construída de modo coletivo é o que me atrai na obra a tempos, ainda nao li porque sei que preciso ler com paciência por ser uma obra dura e bem conteudista mas amei sua resenha, sincera e tocante.
ResponderExcluirOlá
ResponderExcluirAdorei o modo como escreveu, me fez refletir a importancia de uma leitura como esta. Acho que a cada dia estamos mais cientes sobre o papel da mulher na sociedade e tudo que já passamos, creio que em muitos lugares do mundo mulheres ainda estejam submetidas a coisas assim.
Parabéns pela resenha
Olá,
ResponderExcluirA realidade é tão triste, e boa parte do machismo e de não se ter voz ainda é espalhado pela ásia. Toda a tradição e o que é imposto as mulheres, seja por ser OBRIGADA a ter um casamento, a fazer vista grossa aos erros do marido, tudo isso é algo enraizado neles o que deixa tudo mais difícil de ser mudado e de um modo geral bem triste.
Debyh
Eu Insisto
Olá, tudo bem?
ResponderExcluirEu ainda não conhecia esse livro, mas parece ser uma leitura incrível, que nos permite conhecer uma realidade totalmente diferente e entender melhor a situação dessas mulheres. Acredito que seja muito importante entendermos que, apesar de sermos todas mulheres e termos lutas em comum, as diferentes realidades em que vivemos trazem sofrimentos diferentes também. Então, acho que livros como esse têm muito a ensinar, pois mostram uma realidade que é desconhecida por muitos.
No entanto, acredito que seja uma leitura muito dolorosa. Eu já assisti um documentário sobre a situação de meninas nascidas na China (lá, eles têm preferência por meninos) e foi uma das coisas mais tristes que já vi na vida. Pelo que eu percebi da sua resenha, a situação das mulheres também é muito cruel e não consigo nem imaginar tudo que elas precisaram enfrentar. Por esse motivo, acho que é um daqueles livros que a gente precisa se preparar antes de ler.
Não sei se eu estou em um bom momento para fazer essa leitura, mas adorei a sua resenha e vou anotar a dica aqui para ler futuramente.
Beijos!
Olá Nina, não conhecia esse livro, mas pelos seus comentários parece ser o tipo de leitura que todos precisam fazer, esse tipo de livro de cunho mais jornalistico e ainda com um tema tão forte e importante como esse tende a ser uma leitura mais densa e triste mesmo =/ Mas não deixa de ser importante ler e refletir com ela. Adorei sua indicação *-*
ResponderExcluirOi Nina, sua linda, tudo bem?
ResponderExcluirNunca parei para pensar sobre o aspecto que você levantou ao citar um pensamento da autora Simone Beauvoir que diz que não existe “mulher”, mas “mulheres”. Simplesmente genial. Uma das frases mais fortes que já li na vida: o estupro lhe deixava claríssimo que ela era mulher". Que análise você fez com sua resenha, adorei! Esse livro é imprescindível para todas mulheres.
beijinhos.
cila.
Estou com esse livro aqui para leitura, infelizmente, comecei, mas precisei parar por causa de outras atividades, espero concluir em janeiro. Apreciei a introdução de seu texto, somo muitas visto que temos memória celular.
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