O caminho de casa: como a escravidão mudou tudo

Falar de escravidão é ir além do óbvio, até porque o racismo - que existe até hoje - não é apenas aquele que todo mundo sensível enxerga. Em O caminho de casa, Yaa Gyasi, encontramos um ambiente e um sistema escravocrata do início ao fim. No início, tem-se a escravidão mais visível e a menos também, uma vez que a história que aprendemos nas salas de aula não pôde nos contar todos os detalhes, como ela permeava as aldeias africanas. 


Título original: Homegoing
Autora: Yaa Gyasi
Editora: Rocco
Páginas: 448
Ano: 2017
★★★★★ +

Ao contrário do que aprendemos, a escravidão não acontecia apenas quando pessoas eram raptadas. Muitas, na verdade, eram moedas de troca, barganhas, “presentes” e estratégias políticas entre as aldeias. Já no final, nos tempos atuais, é exprimida a escravidão das consequências, do pensamento e da exclusão. O livro mostra como esse sistema repercute na geração americana atual, que está distante do epicentro escravocrata a, pelo menos, cinco gerações. 

O caminho de casa é um retrato fiel e muito bem fundamentado histórica e sociologicamente. Ao contar a história de uma família, de geração em geração, a autora também conta sobre o racismo, a política, os direitos, os costumes e as lutas raciais. 

Tudo começa com Effia, em mais ou menos 1770, que faz parte de uma aldeia africana, cujo pai é o chefe. Effia relata a relação com sua mãe adotiva, por quem é detestada. É muito triste ler o desamor e a busca de Effia por esse amor materno. Por conta essa desafeto, a “mãe” trama um modo de fazer Effia se casar com um homem de fora da aldeia, um cara metido com o sistema escravocrata, mas que não abusa de seu poder para com a esposa. 

Desde que tinha se mudado para o castelo, ela descobrira que só os homens brancos falavam de "magia negra". Como se a magia tivesse uma cor. [...] A necessidade de chamar uma coisa de "boa" e outra coisa de "má", essa de "branco" e essa de "preto" era um impulso que Efiia não entendia. Na sua aldeia, tudo era tudo. Tudo aguentava o peso de tudo o mais".

Effia é apenas a primeira personagem de quatorze. Como a família retratada não é linear, é comum encontrarmos personagens que estão do outro lado da árvore genealógica. O livro, com certeza, pode ser visto como uma coletânea de contos que, devido à genealogia, forma uma única história. Ter percebido isso foi essencial para mim, pois colocou a obra em outro patamar, um muito mais complexo e incrível. É maravilhoso perceber como um único detalhe acontecido a um deles reverbera nas gerações seguintes e em outrem. 

O leitor precisa ficar atento aos personagens e a cada acontecimento, mas isso não faz do livro algo maçante, pelo contrário, essa atenção te faz querer saber mais e mais das personagens. Com O caminho de casa tive que anotar muita coisa, diferente do que acontece com leituras mais comuns. É importante lembrar de detalhes, de falas, de casamentos, de uniões e de alianças, porque tudo influi diretamente nas vidas retratadas. 

Você quer saber o que é fraqueza? Fraqueza é tratar alguém como se pertencesse a você. Força é saber que cada pessoa pertence a si mesma.

É incrível perceber que absolutamente todas as famílias carregam detalhes e acontecimentos que, muitas vezes, nem se dão conta e não sabem explicar o porquê. E, especialmente falando de famílias compostas por pessoas negras, acho que isso é algo muito doloroso. Se pensarmos que pessoas escravas, antes de tudo, eram tratadas como “coisas”, negava-se um nome a elas, para que, portanto, não fossem associadas a seres humanos. Nesse sentido, a genealogia dessas família dificilmente pode ser reorganizada e descoberta. Além da falta de pronome, as pessoas negras eram afastadas dos seus, o que significa que a maioria dos laços foi rompida e desaparecida. 

Eles simplesmente trocariam um tipo de grilhões por outro: trocariam as correntes físicas enroladas nos pulsos e tornozelos pelas correntes invisíveis que envolviam a mente.

O caminho de casa foi o livro mais importante, até agora, que já li na vida. De verdade. Ele me serviu para pensar e reconsiderar muita coisa e para que eu pudesse entender mais sobre empatia, revolta, frustração e falta de caráter. Eu o li no período das eleições e, também por isso, foi uma leitura que mexeu demais comigo, pois fui me lembrando de todas as coisas racistas que já ouvi e li. É impossível não ficar com raiva ou muito triste lendo esse livro, porque ele suscita na gente emoções primárias.

Eu sou apaixonada pela literatura africana, porque ela conta histórias de um jeito único. São histórias muito enraizadas na cultura e nas chagas do país, mas que promovem um carinho universal. Essa resenha não é nem um décimo do amor doloroso que sinto por esse livro. É uma daquelas recomendações que a gente faz meio que obrigando os outros a lerem, por causa da importância histórica. 

Eu acredito que a literatura não é sobre coisas bonitas, até porque a arte nunca teve esse propósito. A arte é denúncia e resistência. Quem acredita que não, ainda não entende a arte que consome. O caminho de casa faz isso com maestria, com sangue, com histórias que fazem parte da crueldade humana, do egoísmo e da falta de caráter. 

Quando foi que o homem branco nos disse que uma coisa era boa pra nós e essa coisa foi boa de verdade? 
Nós acreditamos na história de quem detém o poder. É ele que acaba escrevendo a história. Por isso, quando se estuda História, é preciso sempre fazer perguntas. Que história não está sendo contada? De quem é a voz que foi reprimida para que essa voz pudesse se fazer ouvir? 

~


Eu acredito que o preconceito, antes de ser ignorância, é falta de caráter. O conhecimento te leva a buscar por um caráter equilibrado. Você precisa passar pelo conhecimento para construir um caráter. E esse livro é construtivo de um jeito que te tira o fôlego e que te faz pensar se todas essas pessoas racistas são mesmo humanas 

Love, Nina :)

6 comentários:

  1. Oi Nina, eu não costumo ler muitos livros nesta temática pois me deixam bem triste, porque não é algo que ficou de vez no passado, muita gente ainda sofre preconceito racial, mas entendo a importância desta leitura e pude sentir o quanto tu gostou. Adorei a dica, talvez eu leia.
    Bjos
    Vivi

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  2. Olá!! :)

    Eu confesso que nao conhecia este livro, mas ainda bem que gostaste de fazer a leitura! :) E que ela te tocou tanto...

    Mais do que tocar, pelo que percebi! E otimo quando a tematica e o desenvolvimento do livro, mexem tanto connosco! E percebo como o contexto da leitura pode ter afetado esse sentimento!

    Boas leituras!! ;)
    no-conforto-dos-livros.webnode.com

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  3. Ola Nina!
    Menina, suas resenhas arrasam igualmente aos seus contos! Acho incrivel isso!
    Achei esse livro muito diferente de tudo o que li até hoje, isso acontece porque acredito que nunca tive contato com a literatura africana como você. Fiquei bem curiosa e concordo contigo sobre o que disse sobre a literatura nao ser apenas de coisas bonitas, porém, eu pessoalmente uso a literatura como fuga e por conta disso, busco apenas ler coisas que não são tão intensas e reais. Por conta disso, acredito que esse livro nao seja para mim.

    beijão
    http://www.livrosetalgroup.blogspot.com.br

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  4. Oi Nina, tudo bem? Eu gosto muito das suas resenhas e, fiquei muito feliz em ler a resenha desse livro aqui, porque sei que você é muito sincera e critica com as leituras. Esse ano eu li "A Cor Purpura" e fiquei muito triste com os acontecimentos do livro, porque tem cenas difíceis de digerir.

    Eu gostei muito da sua resenha sobre esse livro, espero que eu consiga realizar a leitura dele ano que vem, principalmente, porque a história é muito diferente de tudo que li até agora, mesmo falando sobre escravidão.

    Beijos e Abraços Vivi
    Resenhas da Viviane

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  5. Essa é a primeira resenha que eu leio da obra, e fiquei muito impactada com a história. Parece muito ser o tipo de livro que é necessário ler para se situar na vida e repensar algumas coisas. Gostei bastante da premissa, eu já sei que vou adorar a leitura, então nem vou ler mais nenhuma resenha. Vou colocar nos desejados já! Valeu pela dica!
    beijos

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  6. Li este livro ano passado e este ano utilizei em sala de aula, é simplesmente perfeito, a forma como a temática é abordada nos fazendo refletir sobre uma dívida histórica, também uma obra propícia para o público juvenil, como foco no conhecimento sociocultural, achei que o livro demonstra bem esse aspecto..

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Editado por Alice Gonçalves . Tecnologia do Blogger.