Setembro Amarelo: literatura é responsabilidade


Mais um setembro que estou aqui para falar sobre coisas tristes, mas que não deixam de ser realidade. 

Quantas vezes nos perguntamos se tal coisa parece ficção, né? Mas muitas e muitas vezes é na ficção que o mundo real acontece e se desvela. Assim como estudei na faculdade de jornalismo, a literatura é um reflexo do que há no mundo concreto. Pode não ser o reflexo exato - pois acreditar em um retrato fiel desconsidera fatores que vão além do fazer -, mas existe embasamento; é um retrato verossímil. Literatura é se perguntar: eu acredito? 

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Tendo o mote da verossimilhança, decidi atrelar à campanha Setembro Amarelo, que pretende dar visibilidade à realidade da depressão e do suicídio. 

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Mas, se a literatura pode se embasar na saúde mental para estruturar um relato, por que estou aqui falando de responsabilidade? Será que a literatura não é aquilo que está na nossa mente e ponto final? Pois é. Não. Acontece que, se a literatura é um reflexo do mundo real, significa que ela acarreta muitas consequências nas pessoas que a leem. E, por isso mesmo, significa que é preciso entender e refletir sobre aquilo que se escreve. 

Queremos escrever o que bem quisermos - sobre bruxas, assassinos, amores que desafiam normas sociais. E tudo bem. O que não está tudo bem é esquecermos que a ficção provoca reações reais na sociedade. Um exemplo disso é o Efeito Werther. Ou como O conto da Aia nos choca de forma violenta quanto às questões de resistência feminina. Ou como Jogos Vorazes ainda nos alerta sobre totalitarismos políticos. A ficção, apesar de parecer distante demais do mundo concreto, está mais perto de nós do que fingimos não acreditar. 

Acompanho muitas divulgações de autores e autoras nos grupos do Facebook e, não raro, me deparo com histórias romantizadas, a maioria sobre romances abusivos. Já me deparei com livros que quiseram falar sobre transtornos psicológicos, mas sem embasamento real. São nessas horas que me pergunto onde está a responsabilidade. Por que achamos que ficção é lazer, se ela vai surtir efeitos? Não se trata de censura, mas de entender sobre a própria realidade. Temos, sim, que, enquanto escritores, nos perguntar: será que estou trilhando um bom caminho? Escrever é muito mais do que uma diversão: é saber que a sua mensagem será lida e que você tem responsabilidade sobre ela. Você não pode encontrar desculpas, tem que lembrar que quem lerá esta mensagem tem uma história real. Mais importante ainda: a sua literatura repercutirá um efeito na história real do leitor. 

Aprender sobre responsabilidade, dentro da literatura, pode ser feita de muitas maneiras. Uma delas é saber ouvir. Eu sei que as nossas rotinas atuais nos soterram de coisas a serem feitas com tempos-limite, o que é uma desculpa perfeita para ignorar tarefas e para ignorar nossa própria natureza humana. Queremos muito falar, o tempo todo, mas ouvir é difícil. Ouvir significa que teremos de administrar nosso tempo. Mas é ouvindo que aprendemos sobre o que o outro acha importante, o que gostaria de ler, o que sente falta naquilo que lê. É ouvindo, também, que aprendemos que o outro tem importância. A empatia nos ensina que a responsabilidade é honrar as dores dos outros. É lembrar que não estamos sozinhos no mundo e que a nossa dor não é solitária. E não é incrível saber que não estamos sozinhos? 

Você pode estar escrevendo sobre adolescentes com problemas de autoestima e transtornos psicológicos, mas nunca foi - ou não é - esse adolescente. Você pode imaginar e inventar. Mas também pode ir atrás de pessoas que têm ou tiveram esta realidade em suas histórias reais. Você não estará "perdendo tempo", isso se chama pesquisar, embasar. Porque, veja bem, sua história estará dialogando com pessoas reais, com pessoas reais que, talvez, têm ou tiveram realidades parecidas com a que está escrevendo. Ouvir pessoas reais, ler sobre casos reais, entender o impacto do que está escrevendo significa que a literatura está além da imaginação. 

Glamourizar a imaginação como um dom em detrimento do trabalho árduo que é escrever e impactar vidas que não lhe pertencem é extremamente perigoso. Literatura é realidade, sim. Se não o fosse, os leitores pouco se interessariam por temas específicos, como são as distopias. Fazer literatura é fazer o outro refletir, a partir de problematizações. É trazer verdades que pouco são ditas e ouvidas. 

Escrever sobre transtornos psicológicos, sem nunca tê-los experimentado, é muito difícil. Escrevê-los sem pesquisa e embasamento é ainda mais. Será que o outro vai acreditar? 

O mais difícil sobre escrever fora da zona de conforto é a verossimilhança. E, se a literatura não é capaz de fazer essa conexão, está falando algo. E a verossimilhança pouco tem a ver com a imaginação, tem a ver em retratar o que acontece de real e se responsabilizar pelo que está sendo retratado.

A literatura é muito mais do que uma palavra ao lado da outra: é um transformador de vidas. E você não pode brincar com a vida alheia simplesmente porque quer, simplesmente porque são palavras. Palavras também machucam, debilitam e catalizam consequências irreversíveis. E é por isso que existe responsabilidade. A literatura não precisa fazer refletir o tempo inteiro, mas quem a escreve precisa lembrar que refletir faz parte da escrita. Nós refletimos no início de um esboço e no ponto final definitivo. No meio disso tudo acontece a responsabilidade: saber construir as personagens, o que se quer com elas, até onde devem ir, como suas histórias serão acreditadas.

E como transformar a responsabilidade em algo verídico? Construa conexões. É comum que autores façam notas - antes ou depois da história em si - para prestar esclarecimentos acerca dela e é ali que encontram um espaço real para falar da concretude que escreveram. Oferecer dados, informações e prestam serviços para deixar os leitores cientes da responsabilidade que se escreveu ou se escreve é uma solução.

Então, escrever é muito mais do que pensar no agora, é pensar no que pode acontecer, no depois - será que vão acreditar? Vão, se você lembrar que não é apenas seu nome em jogo, mas o nome de muita gente que vai além do seu controle. Apesar de não ter controle sobre elas, você tem o controle das palavras que escreve. E palavras não são meramente letrinhas, são pontes. 



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10 de setembro é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio.

Você quer ajudar? Que tal começar a se informar melhor? Conheça a campanha Setembro Amarelo.

Precisa de ajuda? O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio gratuitamente. 
Ligue 141 ou fale com algum voluntário pelo site.

Love, Nina :)

14 comentários:

  1. Adorei o texto, muito esclarecedor. Escrever não é só sentar e digitar. Escrever é muito além, lidamos com vidas, afinal, as pessoas que vão ler nossas histórias, vão viver um pouquinho daquilo que escrevemos.

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  2. Nina como sempre, você é maravilhosa na escrita, fantástica e nos traz um assunto muito triste, que vou te falar hein, a maioria das pessoas não dão a mínima e nem se importam com o sofrimento do próximo ou se a pessoa estará viva amanhã, lindo e maravilhoso e ao mesmo tempo triste e realista.
    Beijinhos

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  3. Olá,

    Acho essa campanha fantástica e apoio muito. Queria tivesse mais eventos e que as pessoas falassem mais sobre isso, como palestras de ajudas nas escolas e faculdades, seria muito interessante. Mas acredito que estamos caminhando para uma conscientização e ajuda ao próximo. Adorei o seu texto, muito lindo e inspirador.

    Abraços,
    Cá Entre Nós

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  4. Nina eu adorei seu texto e acredito que todos deveriam lê-lo!
    É muito importante a conscientização do suicídio pois muitas pessoas ainda tratam esse tema como uma simples banalidade, o que com certeza não é. E se tem alguém sofrendo ou pensando em dar cabo da própria vida é necessário pedir ajuda sim! Nem tudo está perdido! A vida é bela e devemos valorizá-la e aproveitá-la ao máximo! Espero que essa campanha surta efeitos positivos.
    Parabéns pelo post!

    beijinhos!

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  5. Eu tenho visto MUITAS obras romantizando relacionamento abusivo, estupros, agressões e outras que mostram pessoas depressivas como loucas ou como se fosse só a pessoa sair de casa e ter uma distração para melhorar. Muitas vezes os autores colocam personagens dependentes de outros para tirarem da depressão Na maioria dos casos uma mulher está em depressão e aparece "o príncipe encantado" que a faz "melhorar".

    Bom, gostei da sua postagem e achei muito bom você abordar esse assunto aqui no blog.

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  6. Nunca encarei a literatura como simples leitura, talvez por isso não me arrisco neste campo, mas gostei muito da sua postagens, suas palavras foram bem pertinentes e com certeza leva a algumas reflexões.
    Bjs, Rose

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  7. Muito bacana você levantar isso!
    Acabei de topar com um conto que achei irresponsável por outros motivos, mas concordo que você deve embasar os assuntos e não tratar levianamente.
    Quando temos a questão do suicídio por exemplo, custa nada terminar o livro aconselhando a pessoa a procurar ajuda como vi em um livro do King esses dias ;)
    beijos

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  8. Olá Nina!
    Que belo texto!
    Acho que é muito importante trazer a tona essas campanhas para as pessoas se informarem mais e saberem como lidar com os que passam por isso.
    Gosto muito como algumas obras tratam com muita propriedade os assuntos nos envolvendo e nos fazendo até sofrer com os personagens.
    Beijos!

    Camila de Moraes

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  9. Essa campanha tá bombando.
    Mas as questões que você levantou aqui são de grande significância.
    Adorei os pontos ressaltados, é fato que é preciso ter muita cautela com o que se escreve, é uma grande responsabilidade, e é verdade que muitos não têm esse cuidado.
    Excelente texto. Compartilhando já.
    Beijos

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  10. Nina, achei muito bonitas e bem exploradas suas palavras no texto.
    Concordo que romantizar assuntos sérios não é uma boa.
    É importante sim ter um cuidado sobre o que e como se escreve.
    Espero que seu post ajude as pessoas a terem consciência no que escrevem por aí e não só autores.

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  11. Ótimo texto, ótima e necessária reflexão. O assunto é muito importante para ser discutido em obras literárias sem o devido embasamento.
    Beijos
    Mari
    Pequenos Retalhos

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  12. Nina, de longe, esse é um dos melhores textos que vi sobre o Setembro Amarelo.
    Concordo com você, a Literatura, muitas vezes, tem caráter formador, como já diria Antonio Candido. Não se pode escrever sobre certos assuntos sem um bom embasamento e sem um objetivo real, porque muitas vezes, ainda que inconscientemente, aquilo vai sendo naturalizado, quando na verdade, deveria ser pensado de forma mais crítica.
    Excelente texto e reflexão.
    Abraços.

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  13. Olá, Nina.
    Concordo com você e gostei de seu texto. Concordo também que o autor tem que saber trabalhar o tema que irá desenvolver, para não acabar atingindo de uma forma ruim o leitor.
    Estou adorando essa conscientização dos blogs para um tema tão sério!

    Beijo,
    http://pactoliterario.blogspot.com.br/

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  14. sobre a temática do suicidio, vejo muitas obras tratando a coisa toda com muita superficialidade, e esse tipo de livro acaba sendo um tiro no pé. ao invés de ajudar, acaba piorando o quadro...
    interessante tuas considerações sobre o assunto...
    bjs...

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Editado por Alice Gonçalves . Tecnologia do Blogger.