As garotas: pertencimento, abuso e liberdade

As garotas, da Emma Cline, está na minha meta do Leia Mulheres pra esse ano. A escolha dele se deu muito mais por seu gênero (um young adult ambientado no final dos anos 60) do que por sua temática. 

Confesso que nunca li a sinopse dele inteira antes de tê-lo em mãos, porque gosto muito da surpresa de se ler uma história às cegas. Eu não sabia muito bem o que esperar, além de que acompanharia a vida de uma garota adolescente. 


Título original: The Girls
Autora: Emma Cline
Editora: Intrínseca
Páginas: 331
Ano: 2016 (EUA) | 2017 (BR)

Não sei se foi por não ter lido a sinopse, ou se porque imaginei uma trama totalmente diferente, mas As garotas me rendeu uma leitura arrebatadora. Apesar de haver muito estranhamento e um sentimento pungente, eu adorei ter feito a leitura. Pela história não se passar no hoje, distancia-se muito do estereótipo dos livros YA's atuais. Existe uma adolescente, mas ela não está na escola, sua vida não gira em torno de conquistar "o garoto dos seus sonhos" e clichês narrativos do tipo. 

Evie é a protagonista narradora que aparece em dois momentos diferentes: no agora e no passado. A Evie do passado é a parte que realmente importa, porque é nesse tempo que tudo se desenrola. Ela tem quatorze anos, é uma garota dentro do esperado, tem uma vida comum. Mas, quando avista um grupo de garotas na rua e fica especialmente interessada na garota mais velha delas, sua rotina sofre uma mudança abrupta em meio ao desconhecido libertador, ideais filosóficos, abusos deliberados e a constante busca ao pertencimento.

"Ser parte desse grupo sem forma, acreditando que o amor poderia vir de qualquer direção. Dessa forma você não ficaria decepcionada se ele não viesse em quantidade suficiente da direção que você queria",
p. 103

Suzanne é a garota que encanta Evie e, por causa dela, a protagonista se adentra em uma vida colapsada, mas que "vende" a ideia de uma liberdade plena. Existe, como eu disse, um estranhamento durante a leitura, não somente por causa da cultura hippie ser determinante para a história, mas também pelas situações narradas: relações deturpadas e manipuladas com base no abuso (tanto psicológico quanto sexual), idealizações infantis, compulsões impensadas, conivência em ações claramente desumanas. 

Fica difícil não se chocar com o teor narrado, mesmo que seja escrito de uma forma simples e até mesmo superficial e poética. Ainda que Evie esteja sendo manipulada toda hora, é difícil não fazer um julgamento. Mesmo que ela tenha quatorze anos - e muitas vezes se descreva como "infantil" ou "criança" -, muitas de suas ações são refletidas e aceitas. Não que tenha orgulho delas, mas não é do tipo que sinta receio do que provoca ou do que lhe é provocado. O leitor entende que Evie é muito consciente de seu poder. 

Falando em poder, é muito cedo que Evie se enxerga ora como objeto sexual, ora como um ser sexual que sabe que pode conseguir o que quer com sua incipiente sexualidade. As garotas, aliás, tem um teor sexual intenso durante toda a narrativa. Esse elemento conversa, é claro, com o movimento hippie, que idealizava o amor livre. No entanto, dá para perceber diversas contradições na comunidade em que Suzanne está inserida: apesar de haver o coletivismo, existe violência, autoritarismo e, especialmente, patriarcalismo. 

Ainda que a história seja narrada por uma garota, que ainda está se construindo enquanto ser e enquanto mulher, é notável que é orbitada por homens que tanto a oprimem como a encorajam se libertar, pensando unicamente em seus próprios desejos masculinos. O sentimento pungente do que falei lá em cima se refere justamente a isso e, também por isso, o livro se faz muito incrível, intenso e essencial. Talvez converse mais com garotas e mulheres, por apresentar cenas tão brutas e machistas. 

Aqui temos também a descoberta da sexualidade - tanto no âmbito comportamental, quanto no âmbito do desejo. É perceptível que Evie se deixa ser manipulada por Suzanne e pelos outros por causa do que sente pela garota. Suzanne é a personagem feminina que mais aparece, depois de Evie, e, ainda que seja tida como especial para Evie, é mostrada claramente como uma pessoa má, sem empatia e profundamente sedenta de atenção. Ainda que seja levemente poética a forma como Evie ama Suzanne, temos aqui um exemplo de abuso protagonizado entre garotas. Suzanne sabe do sentimento de Evie e, muito obviamente, tira proveito disso sem remorsos.

"Eu não contei nada a ninguém porque queria mantê-la a salvo. Porque quem mais a amava? Quem tinha segurado Suzanne nos braços e dito a ela que o seu coração, pulsando em seu peito, estava ali de propósito? (...) Tentei entender aquele momento, guardar na mente uma imagem de Suzanne. Suzanne Parker. Os átomos se reorganizando na primeira vez em que a tinha visto no parque. A forma como a sua boca sorrira contra a minha",
p. 325

As garotas apresenta uma realidade chocante, mas muito reflexiva. É uma leitura difícil, que aflige sentimentos conflituosos e agoniantes, mas que encanta por ser muito bem delineada e por ser construtiva para o leitor. O livro dá voz a garotas sujeitas às diferentes violências e, por isso, acompanhá-las é tão, digamos, viciante. Ainda que as violências que sofrem sejam difíceis de ser lidas - mesmo com a prosa poética da autora -, o ritmo de leitura é ótimo. A escrita da autora é algo incrível também, mesmo com suas frases quebradas - fica difícil largar o livro. 

É, com certeza, um dos livros young adults mais autênticos, conflituosos e importantes que li na vida. Muita gente tem a ideia de que histórias que giram em torno de adolescentes - especialmente adolescentes garotas - são redundantes e vazias, mas fico imensamente feliz pela autora ter conseguido oferecer uma trama tão rica e tão fora da curva. 

Depois que fiz a leitura, fiquei sabendo que o livro é inspirado numa história real, o que me fez sentir ainda mais adoração por ele. 

///


A autora Virginia Woolf, em "Profissões para mulheres e outros artigos feministas", escreveu sobre O Anjo do Lar, uma entidade feminina extremamente simpática, encantadora, altruísta, casta e sem opinião própria. Mas, para a real Virginia existir, O Anjo do Lar deveria morrer.

Penso eu que a tal Anjo do Lar não assombra somente as mulheres escritoras. E, de fato, Virginia escreve:

"Na verdade, penso que ainda vai levar muito tempo até que uma mulher possa se sentar e escrever um livro sem encontrar com um fantasma que precise matar, uma rocha que precise enfrentar. E se é assim na literatura, a profissão mais livre de todas para as mulheres, quem dirá nas novas profissões que agora vocês estão exercendo pela primeira vez?".

Talvez ser mulher não seja sobre ganhar flores e receber elogios por aguentar o que for. Talvez ser mulher seja sobre matar fantasmas que foram produzidos especialmente para nos dizer que nunca chegaremos a lugar algum. Mas a gente tem chegado - os outros gostando e encorajando, ou não.


Love, Nina :)

15 comentários:

  1. Olá, tudo bem?
    Eu ainda não conhecia esse livro e gostei de saber que ele não é um YA clichê igual estamos acostumados a ler por ai, mas algo mais profundo, com um protagonista interessante e decidida. Gostei muito da sua opinião, é tão bom sermos surpreendidas por uma leitura, néh?

    Beijos e Abraços VIVI
    http://vickyalmeida.blogspot.com

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  2. Já ouvi falar deste livro e parece muito interessante, muito forte. Sei da inspiração na história real, o que me dá mais curiosidade - fico feliz por ver mais uma opinião positiva!

    E acima de tudo, feliz por ver mais gente dedicada a ler mais mulheres :)

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  3. Olá!
    Nunca tinha ouvido falar desse livro, mas gostei bastante da premissa! fez-me lembrar de um outro young adult: Bliss.
    Já vou acrescentar As Garotas a minha lista, quero muito conhecer essa história.
    Bjs e obrigada pela dica!

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  4. Sua resenha ficou perfeita! É a primeira vez que vejo falar desse livro, mas sua resenha me cativou totalmente. Acho bacana esse ser um young adult que os transfere tantos sentimentos, muitos conflitantes e tal. Gostei da temática e já vou colocar nos meus desejados.
    beijos
    www.apenasumvicio.com

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  5. Oi Nina tudo bem? Não conhecia o autor e nem o livro, fiquei interessada em saber mais dessa história, parabéns pela sua resenha. Bjs!

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  6. Caramba, que resenha linda!
    As frases destacadas me fizeram refletir muito. Imagino o quanto o livro deva fazer a gente pensar no assunto, né? Adorei mesmo ler sobre essa obra, e espero muito poder conferir a leitura em breve!

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  7. Olá, tudo bem? Que livro tenso, mas mega necessário realizar a leitura. O conhecia somente por capa, nunca me interessando procurar saber mais; Sua resenha me fez enxergá-lo com outros olhos, principalmente pelos temas "polêmicos" trazidos. Acho que seria uma leitura muito válida para mim. Adorei!
    Beijos,
    https://diariasleituras.blogspot.com

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  8. Assim como vc, eu tbm gosto de dar uma chance para o livro sem ler muitos detalhes sobre ele. Gosto da sensação de surpresa rs... Não conhecia esse livro, mas senti a tensão na trama. Sua resenha fez com me interessasse pela leitura <3

    Beijos
    Sai da Minha Lente

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  9. Tem muitos tribos que eu também não leio a sinopse porque prefiro a surpresa da leitura. Este livro não conhecia, achei interessante e vou dar uma olhada.
    Bjs Rose

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  10. Olá!
    Esse livro parace ser bem intenso e mesmo sendo YA de uma época que não tenho muitas referências, achei bem interessante como foi conduzido e me agradaria a leitura.
    Beijos!

    Camila de Moraes.

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  11. Também gosto muito de ler histórias às cegas. E achei o máximo ser um YA que se passa em outra época e sai do padrão do que costumamos ver, é um gênero que curto muito e fiquei com bastante vontade de vê-lo trabalhado de outra maneira. Fico feliz por saber que a trama é tão rica e ainda inspirada numa história real. Obrigada pela dica.

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  12. Olá, tudo bem?
    A sua resenha ficou maravilhosa, está de parabéns, ficou bem escrita e organizada. Eu já li diversas resenhas "As Garotas" de Emma Cline e todas foram super positivas, esse livro já está na minha listinha para 2018!
    Abraço!

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  13. Oi, Nina! Adorei o seu post!
    Quando li o título, pensei em algo totalmente diferente. Curti muito saber que não é nada clichê, muito pelo contrário. Vai pra minha lista de desejados.
    Bjs
    Lucy - Por essas páginas

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  14. oi, Nina. não curto YA, mas confesso que dessa vez eu faria uma exceção... pela ambientação nos anos 60,pela capa, pela proposta que o livro pare trazer...
    sem os clichês habituais de hoje em dia no gênero, isso fez com que a vontade aumentasse...
    bjs...

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  15. Oi Nina,
    Não conhecia o livro, mas fiquei muito curiosa, amei a temática, a premissa e a capa.
    Gosto muito de Yas e esse tema, principalmente pelo periodo em que foi ambientado me desperta muito interesse.
    Ótima dica, Beijos

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Editado por Alice Gonçalves . Tecnologia do Blogger.